As implicações da ação do profissional da saúde
01/07/2022 - Clodomiro José Bannwart Júnior
As profissões, nas suas diversas modalidades, procuram refletir a prática, a atitude e a tomada de decisões de seus profissionais por meio de parâmetros normativos, os quais, em sua maioria, encontram apurada sistematização nos chamados códigos de ética. Não se pretende entrar no mérito da concepção dos códigos de ética profissionais, tampouco fazer um juízo das éticas aplicadas. A pretensão é enfocar a ação do profissional da saúde a partir de três diferentes perspectivas: do ponto de vista pragmático, ético e moral.
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A ação pragmática busca responder à questão “O que devo fazer?” sob a perspectiva teleológica, ou seja, do ponto de vista dos fins e dos objetivos estabelecidos. Nesse enfoque, trata-se de escolher racionalmente os meios eficazes para a consecução de determinados fins previamente definidos. Por exemplo: se o fim é o tratamento da doença, cabe ao profissional da saúde, de um ponto de vista pragmático, certificar-se que o seu procedimento leva em conta a escolha dos meios mais adequados para atingir o fim proposto, o que implica em conhecimento empírico, domínio de técnicas e seleção da estratégia mais apropriada para combater a doença. O sentido ‘imperativo’ daquilo que deve ser feito, quer dizer, aquele dever próprio do profissional da saúde, é relativo ao fim que ele se propõe alcançar. Portanto, é um dever variável exemplificado na seguinte fórmula: se se quer b deve-se fazer a. O que se leva em conta para a avaliação do êxito de tal ação é a eficácia com que a mesma se serviu dos meios para atingir os fins. Nesse modelo de ação julga-se apenas a eficácia dos meios sem a preocupação de saber se a ação foi boa (ética) ou justa (moral).
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A eficácia, no entanto, tem sido utilizada no modelo de organização capitalista como a mais importante ferramenta para aferir padrão de normatividade na orientação de ações e decisões, principalmente no campo da gestão empresarial e da operacionalidade direcionada à rentabilidade. Com isso não se quer negar a importância que a dimensão pragmática tem na verificação das competências e habilidades do exercício profissional; porém, a maioria dos códigos de ética peca por reduzir os parâmetros normativos à simples consecução da eficácia de fins previamente determinados por cada ofício.
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Aquele que exerce o serviço da saúde não deve limitar-se a uma avaliação unilateral de sua ação profissional. Se a eficácia da ação é importante, do ponto de vista da formação acadêmica, mais ainda o é a sua capacidade de agir eticamente, do ponto de vista da sua relação com o paciente. A ética, nesse aspecto, tem a ver com a autocompreensão, com o tipo de vida que a pessoa leva, com os valores, crenças e tradições partilhadas comunitariamente, enfim, com a formação do caráter de biografias individuais forjadas no coletivo. Nós nos construímos eticamente à medida que a resposta ao “o que devemos fazer?” adquire relevância em relação àquilo que é bom para nós e para os outros. As escolhas que fazemos na vida visando realizar o bem, nós as realizamos com vistas a alcançar aquilo que seja bom para nossa autorealização e autocompreensão existencial. A própria escolha profissional enquadra-se numa atitude ética, pois as consequências de tal decisão têm implicações, usando-se aqui uma terminologia aristotélica, no bem viver e na felicidade do indivíduo. A ética tem como pressuposto fundamental, além da formação da personalidade, também o reconhecimento da identidade individual do outro, permeada com seus valores e crenças particulares.
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Portanto, a interação entre médico e paciente não cobra apenas uma relação medida por parâmetros de eficácia. Não basta ao médico curar a doença, ele deve transcender os formulários e perceber por trás de cada prontuário a existência da pessoa humana que, por mais fragilizada que se encontre no momento da enfermidade, almeja não só o restabelecimento da saúde, mas também o bem-estar e o reconhecimento de sua dignidade. Talvez seja o profissional da saúde aquele que mais de perto mergulha na compreensão existencial do ser humano e, talvez, por esse motivo, aquele que é mais cobrado a ter atitudes ponderadas do ponto de vista ético na sua atividade profissional. Nas mãos desse profissional não estão objetos passíveis de manipulação, mas seres humanos que, tal como espelhos, refletem, de forma nítida, a fragilidade existencial do homem, além de sua roupagem biológica.
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Em nosso modelo de organização social, as empresas e corporações cobram atitudes éticas dos profissionais que promovem suas marcas, porém, não transpõem os limites da ‘eficácia’ para mensurar o valor de suas ações. As decisões restringem-se aos ‘meios’ e não aos ‘fins’. A meta por eles visada é encontrar e estabelecer as melhores estratégias para alcançar o fim previamente fornecido e traduzido, grosso modo, no aumento da lucratividade, na redução de custos dos bens produzidos, na restrição de mão de obra etc. Em tais ações não se visa o bem viver nem a felicidade das pessoas, mas a simples permanência e sobrevivência do fim último do sistema: o capital. Nesse contexto, o capital torna-se um fim em si mesmo e as pessoas transformam-se em meios, passiveis de manipulação e de dominação, sempre a serviço desse bem absoluto que desconsidera o bem viver de comunidades e indivíduos.
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No campo da saúde, o profissional deve estar atento para não sucumbir à lógica do capital, evitando que o ser humano, considerado, nas palavras de Kant, um fim em si mesmo, e, por esse motivo, possuidor de dignidade, seja convertido em objeto passível de utilização para outros fins. Certamente, a peculiaridade do agir na área da saúde exige que o profissional conheça o homem não só em seu ser biológico, terreno no qual ele é cobrado pela eficácia dos resultados, mas também em sua dimensão coextensiva da “humanidade”, assegurando-lhe um tratamento ético que leve em conta a sua dignidade biográfica.
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Já no âmbito das questões morais saltamos da esfera dos valores para a tematização da validade de normas de acordo com parâmetros de justiça. Os discursos morais, em sua disposição pós-metafísica, compreendem igual respeito e consideração simétrica por todos, buscando regular de forma imparcial os conflitos de ação. Isso implica o modo de agir que resulta no atendimento do que seja justo, remetendo a princípios de caráter abstrato, graças aos quais as normas podem ser justificadas e validadas universalmente. Nesse caso, o sentido imperativo do dever moral não depende de fins nem de preferências subjetivas ou coletivas, mas da obrigação incondicional e universal de normas válidas para todas as pessoas sem distinção. As questões morais remetem a temas de proporções universais que possuem implicações normativas também de alcance universal. Problemas relativos ao tratamento internacional dos direitos humanos, incluindo outros como a degradação ambiental, a manipulação genética, a intervenção da Biotecnologia no organismo humano, certamente implicam na necessidade de um universalismo normativo que tematize a validade das normas à luz de princípios imparciais e equitativos de justiça.
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A esfera da saúde não se abstrai de tais problemas, pois, como temos visto, o desenvolvimento tecnológico possibilitou a utilização de instrumentos mais eficazes para o modo de fecundação, tratamento e prolongamento da vida humana, porém, trouxe consigo problemas que devem ser discutidos especificamente no campo da moral, como a eugenia, a eutanásia, a morte clinicamente assistida, a seleção de pacientes que se beneficiarão da utilização de aparelhos tecnológicos, entre outros. São questões que não devem ser decididas com base em preferências subjetivas ou valorativas (ética) nem simplesmente por padrões de eficácia (pragmática), já que envolvem orientações normativas sustentadas em razões (formação consensual da vontade) e em parâmetros de justiça (imparcialidade). A implicação do agir e da tomada de decisões no contexto das questões morais amplia consideravelmente o campo da razão prática, com vistas a posicionar-se diante do que é o justo. Habermas defende a concepção de uma moral pós-metafísica baseada na ideia de razão discursiva e alicerçada em parâmetros formais como direitos humanos, igualdade e liberdade.
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Porém, o avanço da Biotecnologia e a ampliação da possibilidade de intervenção no material genético da espécie criaram condições para interferir na natureza orgânica em função do atendimento preferencial de terceiros, disponibilizando aquilo que a crença religiosa e até mesmo a modernidade secularizada compreendiam como indisponível, a saber: o processo contingente de fecundação. Tal evento coloca-nos próximos à fronteira da instrumentalização da vida humana, que passa a dispor de condições de produzi-la ou projetá-la de acordo com preferências valorativas de terceiros.
Esse fator evidencia a fragilidade da moral secular moderna, pois, segundo Habermas, a participação no jogo linguístico da moral universalista somente é possível se for pressuposto, por meio da situação ideal de fala, que os participantes envolvidos sejam os únicos responsáveis pelo status moral, ou seja, pelo status de serem livres e iguais na participação comunicativa recíproca. No entanto, considerando a possibilidade de heterodeterminação eugênica, as regras do jogo linguístico na qual a moral pós-convencional se apoia, podem ser abaladas, haja vista que a partir do momento que um terceiro toma uma decisão que é irreversível e que interfere na constituição orgânica de outra pessoa, a simetria de responsabilidade e autonomia exigida na convivência entre pessoas morais, livres e iguais torna-se limitada e desequilibrada.
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Não se quer com isso prejulgar o avanço da Biotecnologia, mas destacar que o seu alcance sinaliza para as dificuldades suscitadas no âmbito normativo da moral pós-convencional, o que demonstra a fragilidade dos pressupostos que sustentam a moral secular moderna e o risco que o desenvolvimento tecnológico pode acarretar ao reduzir a dimensão normativa ao crivo único e exclusivo da eficácia. A trilogia pragmática, ética e moral deve ser considerada sem sobreposições ou enfoques unilaterais. Mesmo que a fronteira entre cada modelo de ação pareça tênue, o profissional da saúde, sobrecarregado em seu “fazer” pela responsabilidade que ele tem sobre a vida humana, deve dispor de ações e julgamentos que levem em consideração princípios avaliativos para cada situação ou contexto, sob a perspectiva pragmática, ética e moral.
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Para a diferenciação da ação nas perspectivas pragmática, ética e moral, faço referência ao texto: Habermas, Jürgen. Acerca do uso pragmático, ético e moral da razão prática. In: Comentários à Ética do Discurso. Tradução de Gilda Lopes Encarnação. Lisboa: Instituto Piaget. 1999.
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Clodomiro José Bannwart Júnior é professor na Universidade Estadual de Londrina
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(Artigo publicado na Revista Maquinações, PROGRAD, UEL, v.1, p. 58-59, 2007)