O Espírito disruptivo do nosso tempo
15/05/2020 - Clodomiro José Bannwart Júnior

O Espírito disruptivo do nosso tempo

Empregado pelo filósofo Johann Herder, no século XVIII, o termo Zeitgeist (o espírito do seu tempo) foi, posteriormente, transformado em objeto de reflexão filosófica por Hegel. Afinal, como podemos caracterizar o espírito do nosso tempo? Ao que parece, hoje, falta nomenclatura para assinalar o tempo presente. Existem teorias e conceitos que buscam mapear, situar e compreender a franja da história à qual estamos ancorados.

As balizas do Iluminismo e da ciência, da técnica e do progresso material, da confiança em consensos firmados sob as pilastras da racionalidade, tudo isso parece questionado e colocado de ponta-cabeça. Muitos adotam posições agressivas que parecem almejar a ruína do legado da Modernidade e o retorno aos tempos sombrios da Idade Média. Advogam a defesa de autoridades fortes, ambicionam um poder heroico, exaltam o fundamentalismo religioso, golpeiam o relativismo, rejeitam o contraditório, demonizam as pilastras do Estado republicano, atacam as minorias, ao passo que fazem vistas grossas aos efeitos nocivos que afrontam e maculam a dignidade de grupos e de segmentos sociais.

Qual é, afinal, a nova razão do mundo? Acresce a esse quadro uma pandemia em nível global a desafiar o mundo, alterando o comportamento social e individual, e deixando um rastro de incertezas. O cenário impõe mais dúvidas do que respostas.

As interrogações a serem feitas, no mínimo, devem questionar os beneficiários desse estado da arte. Quem são aqueles que se empenham no processo contínuo de “desdemocratização”, ou seja, no esvaziamento substancial da democracia, deixando-a reduzida na sua aparência meramente formal? Quem ganha com a necropolítica, conceito cunhado por Achile Mbembe? A quem interessa uma política disputada com regras que escapam ao debate público e reina à revelia nos extremos, onde o diálogo é asfixiado? A quem serve uma política binária e míope, que devora inimigos paridos por tramas conspiratórias e fakenews, servindo-se das redes sociais para lastrear impiedosamente difamações, ódio e rancor? A quem convém transformar temas políticos em trincheiras que reforçam a animosidade e maculam qualquer tentativa de diálogo e de consenso?

Há de se ponderar, diante desses e de outros questionamentos que alinham-se a uma dose de ceticismo, se esse quadro caótico não é resultado de decisões políticas conscientemente deliberadas. Enfim, se o espírito de nossa época não é consequência de uma política assombrada, institucionalmente incapaz e refém do egoísmo de uma ínfima parte dos inquilinos desse planeta.

Zygmunt Bauman, ao término de sua obra “Retropia”, afirma: “Mais que em qualquer outro tempo, nós – habitantes humanos da Terra – estamos numa situação ou/ou: estamos diante da perspectiva de nos darmos as mãos ou de rumar para as nossas valas comuns”.

Clodomiro José Bannwart Júnior é professor de Ética e Filosofia Política na Universidade Estadual de Londrina.

(Artigo publicado no Jornal Ecos de Sant'Ana, maio de 2020)