Páscoa: mistério pedagógico
04/04/2021 - Clodomiro José Bannwart Júnior

Páscoa: mistério pedagógico

Clodomiro José Bannwart Júnior

Quando o novelo da memória é estirado e alcança o passado distante, sempre recupera fósseis lembranças, vestígios e fragmentos temporais encharcados de sentimentos e de saudades. A brisa leve deste domingo de Páscoa levou-me a outro domingo de Páscoa, sepulto no passado, mas tão presente como o Cristo ressuscitado. Lembro-me que estávamos eu, meus irmãos e meus pais na missa da ressurreição na Igrejinha da Vila. Sinto em mim, ainda hoje, aquele abraço da paz, ao final da missa, do meu saudoso pai.

Naquele domingo de Páscoa, recordo-me que o Evangelho foi o de São Marcos, que dizia: “Passado o sábado, Maria Madalena e Maria, mãe de Tiago, e Salomé compraram aromas para ungi-lo. De madrugada, no primeiro dia da semana, elas foram ao túmulo ao nascer do sol. E diziam entre si: ‘Quem rolará a pedra da entrada do túmulo para nós?’”.

As mulheres caminhavam em direção ao túmulo. Estavam abatidas de uma tristeza absurda, insuportável, mas era uma tristeza de amor. A morte não mata o amor. Elas levavam ao túmulo o amor em forma de aroma. Juntas partilhavam também da amizade, essa amarração fraterna que une as pessoas e que ajuda a dividir as tristezas, a somar as alegrias, a multiplicar a esperança e a subtrair, ao final, o desânimo. Na matemática da vida, a morte jamais subtrai o amor, jamais diminui a amizade acolhedora.

Hoje, diante de uma pandemia trágica e do luto coletivo que amortece nossas forças, que amotina lutas em vão, que interroga a própria fé no altar da aflição, que dilacera a esperança ao suplicar por uma despedida proibida, que enterra seus mortos em ritmo fabril, que sepulta no mesmo túmulo os mortos e parte de nossa humanidade, vem a pergunta do evangelho que ecoa na memória. ‘Quem rolará a pedra da entrada do túmulo para nós?’”.

As três mulheres “erguendo os olhos, viram que a pedra fora removida”. Ainda que o peso da dor seja grande, é importante sempre erguer os olhos. Elas ergueram os olhos e viram. Sim, viram algo grandioso: o túmulo vazio. Um jovem sentado à direita, de túnica branca, disse: “Não vos espanteis! Estais procurando Jesus de Nazaré, o Crucificado. Ressuscitou, não está aqui.” E acrescentou: “Mas ide dizer aos discípulos. Lá o vereis”.

O teólogo Paul Tillich, seguindo Santo Agostinho, afirma que “a alma é o lugar do aparecimento de Deus ao homem”. É aí que o vereis. A presença imediata de Deus na alma é a experiência do incondicional em nós; é a possibilidade de enxergá-lo entremeio aos farrapos que agasalha nossa frágil humanidade. É como caminhar no nevoeiro crente de que os passos se firmam no sulco da estrada, seguro de que mais adiante, dissipado o nevoeiro, brilhará a luz do sol.

Assim como microscópio enxerga o vírus mortal que somos incapazes de ver a olho nu, a alma enxerga o invisível, o divino mistério. Ao sermos enleados pelo mistério, a procura cessa e a distância desaparece. Paul Tillich diz que esse é o momento em que “Deus é dado ao homem de tal maneira que se torna mais próximo do homem que o homem de si mesmo”. “Já não sou mais eu que vivo, é Cristo que vive em mim”, conforme testemunhou o Apóstolo Paulo (Gálatas, 2,20). Esse poder unificador, que infunde a centelha do Divino no homem, dignifica-o e confere-lhe o fundamento divino de uma vida que já não é mais ameaçada pela morte.

Em nossa caminhada, cabisbaixos, ainda fazemos a mesma pergunta das três mulheres: “quem rolará a pedra da entrada do túmulo para nós?” A celebração da Páscoa convida-nos a erguer os olhos e ver, com o microscópio da alma, que o túmulo está vazio. É o mistério, talvez o maior, da nossa fé. Perceber isso não é pouca coisa. Como bem expressou o escritor Flaubert, “talvez a morte tenha mais segredos para nos ensinar que a vida”.

Clodomiro José Bannwart Júnior

Artigo publicado no Jornal O Londrinense, em 04 de abril de 2021.